terça-feira, 29 de março de 2011

Os Cus de Judas

Os Cus de Judas – Antônio Lobo Antunes - 1980

“Os Cus de Judas” romance do escritor português Antonio Lobo Antunes que eu li exatamente  na época do lançamento, nos idos anos 80, e a impressão que ficou foi de um texto complexo e de difícil compreensão. É uma obra autobiográfica, isto é, o autor-personagem narra fatos marcantes da guerra Colonial em África e todos os horrores lá vividos quando ele ainda atuava como médico psiquiatra. O romance é recheado de outros fatos importantes contando de maneira descontínua e meio desorganizada o reencontro de Portugal com suas raízes, com seu povo como forma de denunciar vários acontecimentos históricos.

A leitura significa viajar para um mundo descontínuo no tempo e no espaço onde o protagonista registra dois momentos que correm fragmentados, rompendo com certas convenções gramaticais, (sem nenhum tipo de pontuação) representando o seu modo de pensar, e o universo praticamente retalhado, despedaçado: seus pensamentos, seu monólogo interior, e supostamente seu diálogo com uma mulher na tentativa de conquistá-la e algo mais... e essa maneira de narrar inovadora, espontânea, meio surrealista e caótica incomoda o leitor forçando-o a formar uma terceira história, fazendo-o decifrar e desvendar os enigmas e testemunhando a guerra, o jogo de sedução e a desorganização do mundo.

São duas histórias paralelas: a viagem rumo ao passado representando a guerra colonial sob a ótica de um soldado português; e a do presente quando entra em cena situações que indicam uma presença feminina e a  conquista amorosa.

A viagem do tempo presente dura apenas uma noite, enquanto que a do passado dura vinte e sete meses. A divisão dos capítulos no romance está em ordem alfabética, isto quer dizer que há uma certa coerência em sua (des)ordem, podendo ser comparado a um quebra-cabeça que, independentemente de onde se começar a montar, as peças sempre se encaixarão: “Iniciei o longo aprendizado pela agonia” (cap.B), começando sua narrativa de maneira (i)lógica, a guerra colonial que é a grande questão na obra. O primeiro capítulo é marcado pelo embarque para a guerra; o segundo, assinalado pelo segundo dia da viagem; o terceiro é a chegada a Luanda (frente de combate), assim a obra segue a sua viagem...

A arte rompe, desse modo, com seus padrões estéticos e com sua forma tradicional, surge a nova forma de narrar, e a retórica se renova.

Conclui-se que o grande elemento de presença no romance é o tempo passado e tudo nele está ligado à questão da memória  e o narrador faz uso dela como fonte de informação para resgatar seu passado envolvido numa esfera psicológica. Ao fazer uso da memória o narrador estará se distanciando do tempo,  surgem imagens onde não há fronteiras rígidas: “Se tudo vem à tona confusamente, como as imagens que num primeiro momento causam um grande impacto”. São situações confusas e surrealistas como de repente se vê ‘barcos entrando pela janela’ Cap. A. Decifre seu significado, caro leitor!


Os Cus de Judas é um dos títulos mais polêmicos de Lobo Antunes, remetendo o leitor a Portugal como o fim do mundo, lugar abandonado pelo progresso e pela memória. Portugal, país valioso de passado histórico, porém seu progresso em relação à Europa encontra-se estagnado e a memória parcialmente falha.

 No decorrer do romance há informações importantes sobre a guerra colonial e outras relevantes de cunho cultural: literatura, cinema, artes plásticas, música e escultura. Nesta obra há a letra inteira de Paul Simon “ The problem is all inside your head”. In my head? Uma maneira de ilustrar o que representa a expressão "cus de judas".

A obra revisitada em 2011.

E hoje concluo que há no romance três guerras: a primeira em África como ponto referencial de toda narrativa; a segunda é a guerra da sedução que o narrador trava com uma mulher presente na narrativa  apenas como ouvinte; a terceira é a guerra que o protagonista trava com ele mesmo porque ao narrar ele está demonstrando seus anseios, seu dilaceramento interior, desabafando ao mesmo tempo, através da crítica à repressão burguesa.

A obra tem um poder mágico de tirar o leitor de sua zona de conforto e de sua monotonia instigando sua criatividade; ela contém uma essência rica e profunda. A arte rompe com os padrões do passado e se renova. Aqui reina a criação absoluta, irreverente, identificando o homem com o meio em que vive, surge uma nova arte que trata das questões do nosso tempo.

Os Cus de Judas é um dos 1001 livros sugeridos para se ler antes de morrer.
Eunice Bernal

“The problem is all inside your head”.

Um comentário:

Unknown disse...

Muito pertinente sua análise! Parabéns!