terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Lixo Extraordinário

Lixo Extraordinário (2009)

Yes, nós temos esperança! 
Assisti ontem ao documentário Lixo Extraordinário, produzido em 2009 e dirigido a seis mãos pelos brasileiros João Jardim e Karen Harley e pela diretora inglesa Lucy Walker. A obra me causou uma sensação gratificante e de esperança.

Lixo Extraordinário é o lixo comum, produzido por estabelecimentos comerciais e residenciais até uma determinada quantidade, e  são classificados como lixo domiciliar, para diferenciar do lixo infectante. 

A palavra ‘extraordinário’ foi uma escolha acertada para qualificar o substantivo lixo, e com certeza não podia ser melhor, já que seu significado de sentido forte e imponente, caindo como uma luva para este documentário.

O adjetivo extraordinário significa: excepcional; singular; raro; excessivo; em elevado grau; muito grande; descomunal; anormal; assombroso; estupendo, exatamente o que a história vem nos contar.


O filme me fez viajar por algumas situações: um brechó em meu bairro de nome Lixúria, a mistura de lixo ao luxo. Outra lembrança que veio à tona é de uma senhora de uns 60 anos, com problemas mentais que vivia e trabalhava no aterro sanitário, ou lixão de Gramacho, e foi por acaso descoberta no ano 2000 pelo fotógrafo e diretor Marcos Prado que apresentou ao público em 2004 através do documentário sob o nome dela: Estamira. Este aterro sanitário é um dos maiores do mundo, o maior da América Latina, localizado em Jardim Gramacho, bairro periférico de Duque de Caxias e que recebe os resíduos produzidos na cidade do Rio de Janeiro.

A minha outra viagem foi em um texto lido casualmente hoje, intitulado: Vai dar bichos e cheirar mal. Gostei tanto que reproduzirei alguns trechos dele:

Querer ter mais do que o necessário é demonstração de insensatez. É revelação da falta de entendimento do que é a vida, do que representam as riquezas materiais: “porque a vida de um homem não consiste na abundância dos bens que ele possui.” Segundo Rubem Amorese (Ultimato – Set/Out – 2003), os pensadores modernos associam felicidade à saciedade, à satisfação plena dos desejos. Há sérios riscos e perigos em querer ter mais do que o necessário; perigos que dizem respeito ao tempo, aos recursos financeiros, aos talentos, aos bens materiais em geral, à própria vida, enfim. Sejamos cuidadosos: estejamos vigilantes, a fim de que aquilo que ajuntamos, não dê bichos e não cheirem mal.”

Esta passagem descreve perfeitamente o documentário Lixo Extraordinário que mostra o encontro de Vik Muniz, um artista plástico brasileiro de São Paulo que atualmente vive em Nova Iorque, com pessoas que por falta de oportunidades, trabalham num aterro sanitário recolhendo material reaproveitável: papelão, garrafa pet, plástico, alumínio, ferro. O trabalho desse artista é reutilizar todo tipo de material impensável para fazer arte, tais como açúcar, terra, pneus, brinquedos mobília, aparelhos  elétricos e eletrônicos etc,  mesclando tudo com seus registros fotográficos.
Vik Muniz tomou a decisão de voltar ao Brasil e ficar por dois anos no Rio de Janeiro; firmou acordo com esses trabalhadores informais numa troca favores. Os catadores trabalhariam para ele durante esse período recolhendo materiais e servindo de modelo vivo para a sua arte e posando para fotos; e receberiam os valores monetários correspondentes e algo mais no final. Foi gratificante para os dois lados: para o artista e para esses trabalhadores que ganharam além de tudo, um amigo e novas oportunidades de saírem daquela condição, olhar o mundo daquele ponto e enxergar coisas novas além do horizonte. 

No primeiro ano o artista plástico fez o reconhecimento da área, travou relacionamento com muitos deles, e a partir daí  passamos a conhecer algumas histórias comoventes. Ele comenta com o seu colega de trabalho que não nota ninguém ali trabalhando naquela condição, infeliz ou deprimido. São pessoas comuns, como qualquer outra, apenas não tiveram chance de ter um trabalho melhor. Pessoas felizes, em uma renda de R$ 50,00 por dia, sabendo-se que há profissões em nível superior que não chega a ganhar isso.

Sempre com sua câmera, Vik registra tudo e todos, para depois selecionar o material e explorar isso em seu processo de criação e da sua arte final.
Um deles é Tião, presidente da Associação dos Catadores do Jardim Gramacho, personagem marcante da comunidade que encontrou uma banheira em perfeito estado, e o artista teve a idéia de fotografá-lo na pose do revolucionário Murat que fora assassinado em sua casa dentro da banheira e foi pintado por Charlotte Corday. O quadro de Vik ficou bem parecido com a pintura original que ele resolveu levar para ser leiloado em Londres, e nessa viagem levou Tião para participar. Aproveitou e levou-o para conhecer um museu onde havia obras de Basquiat e outros artistas contemporâneos e conversaram muito sobre arte.  O rapaz ficou encantado com tudo que viu e ouviu e não fez feio.

O filme começa e termina no mesmo ponto: no Programa de Jô Soares apresentando o brasileiro Vik Muniz como o artista dos remakes de obras mais famosas, porém usando material inusitado; e ao término mostrando um dos catadores que termina dizendo ao entrevistador algo como:

“- Não somos catadores de lixo; somos catadores de material reciclável.”

 Lixo é tudo igual, o do pobre e o do rico se misturam no aterro sanitário e tornam-se únicos. Há até um momento de descontração entre eles comentando o lixo de cada um. E o filme nem por um momento varre seu lixo para debaixo do tapete.  Sabe-se que incomoda; os preconceituosos dizem que o nosso país só gosta de mostrar favela e miséria. E eu digo que não se trata mais de favela, mas de comunidade, não são catadores de lixo, mas catadores de material reaproveitável. E neste aterro que prometeram fechar suas portas em 2012, nenhum deles gosta de ser tratado como coitadinho, são pessoas, são histórias, são vidas que trabalham, pagam contas, sabem ler, se apaixonam, sorriem, choram, sentem dor de dente e falam  bonito.

Em Lixo Extraordinário aprende-se, nas entrelinhas, que 99 não é 100; aprende-se com a dor da perda de um filho a ser solidário e dar o ombro a quem precisa; aprende-se que O Príncipe pode estar no lixo e que Maquiavel serviu para um leitor voraz conhecê-lo e criar uma biblioteca na comunidade.

 E essa história não acaba aqui. Foi parar na exposição do Museu de Arte Moderna – MAM – RJ, e esses protagonistas da vida real estiveram lá, como convidados ilustres para conferir sua arte final.

E cada um desses protagonistas recebeu da mão do artista Vik Muniz, cópia de sua imagem, um belíssimo quadro.   

Vik Muniz já foi um grande consumista. Ao mostrar a casa onde morou, seu quarto de paredes e teto úmidos por causa da chuva frequente de São Paulo, em um bairro de classe média-baixa, comentou isso, dizendo que, como todo jovem sempre sonhava em ter, comprar, gastar, possuir. E um lindo dia acordou e descobriu que não se precisa ter tanta coisa para ser feliz.

Gratificante. Uma lição de vida. Uma obra de arte. Sem dúvida, merecedor de todos os prêmios. É bem verdade que sempre torci pelo meu país, só que agora torcerei um pouco mais.

Bem, o filme durou 99 minutos, o aterro no Jardim de Gramacho fechará as portas (ou só mudará de endereço?), mas a vida continua. Não se sabe o que será dessa gente que precisa desse trabalho para viver, mas certamente não ficarão desempregados.    

Parece que desta vez o Brasil (em co-parceria) conquistará o tão cobiçado prêmio de academia. Caso nada ganhe, saiba que já te elegi o melhor, mesmo não tendo assistido aos outros.

Karenina Rostov


*****
Título: Lixo Extraordinário
País: Brasil e Reino Unido
Ano de produção: 2009
Tempo: 99 minutos min
Direção : Lucy Walker, João Jardim e Karen Harley
Gênero: Documentário
Idioma original: Inglês

Ôpa! Isso não faz parte do filme, ok? :*

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