sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Depois do Baile


Moscovo I - Wassily Kandinky, 1916, óleo sobre tela

Mazurka é o nome de uma dança tradicional de origem polaca, feita por pares, formando figuras e desenhos diferentes. Certas coisas são fáceis de se compreender e outras não devido à sua complexidade. Há anos atrás, li um conto que, de certa forma, mexeu com o meu emocional. Aconteceu comigo como aquela brincadeira que fazemos com as palavras ao dizer “entendi, mas não compreendi”, mas contando aqui talvez você compreenda.

A vida é feita de pólos divergentes. Antíteses e paradoxos.

Tudo aconteceu DEPOIS DO BAILE. Um conto de Tolstoi. Fiquei anos com a história martelando dentro de mim... e de repente, como acontece com certos sonhos que vira e mexe se repete, voltei a me lembrar... É uma história de amor à primeira vista do jovem Ivan pela encantadora Várenka. Foi um encontro casual num baile e ambos dançaram juntos a mazurka praticamente a noite toda. Ele se encantou pela moça e a descrevia sempre como linda e deslumbrante; a jovem tinha uns dezoito anos na época e era o centro das atenções. O seu sentimento por ela era correspondido. Ele chegou a conhecer inclusive, o seu pai também naquela mesma noite.

De fato, tudo aconteceu DEPOIS DO BAILE. Ivan viu a sua vida inteira se resumir naquele único dia; toda ela foi radicalmente transformada por aquela infinita e inesquecível madrugada em que ele conheceu o BEM e o MAL. A partir daí sua vida nunca mais foi a mesma.

Assim como eu me lembrei dessa história, aconteceu com Ivan. Depois de muitos anos ele relembrou aquele dia e contou para os seus amigos. Contou que Várenka se casou, teve filhos e mesmo estando numa idade avançada, ele a admirava, e a achava linda e simpática. Passagem da vida de Ivan que modificou o seu modo de pensar. Depois de anos ele repensou seus valores. Concordo que certas experiências são universais, capazes de modificar a condição humana individual.

E a medida que ele ia contando aos amigos esse fato, as suas lembranças daquele dia e pensamentos afloravam. Ivan contou que conheceu o pai da jovem também naquele baile. Ele era um militar do exército. O coronel se retirou mais cedo do baile deixando a sua filha ficar um pouco mais naquela festa, talvez até o fim. A noite foi esplêndida para Ivan. Viu-se perdidamente enamorado pela jovem. Foi o dia mais feliz de sua vida.Trocaram olhares e e-mails. Este último é por minha conta.

“Como acontece com o conteúdo de uma garrafa que, após a primeira gota vertida, começa a fluir em grandes jatos, também na minha alma o amor por Várenka liberou toda a capacidade de amar que se ocultava no meu íntimo.”

A felicidade de Ivan durou pouco. Ao partir, foi testemunha de algo desagradável que aconteceu no caminho. Ele, DEPOIS DO BAILE, ouvia outro tipo de música que era do tipo áspera, desagradável e maldosa acompanhado ao som de flauta. Eram soldados castigando um tártaro por tentativa de fuga. O tártaro foi maltratado de inúmeras formas, espancado, surrado e arrastado por aqueles militares que apenas cumpriam ordens vindas de seu superior e numa procissão pelas ruas cobertas de neve tudo sob o comando do coronel, pai de Várenka.

Ivan teve em uma única noite a melhor e a pior experiência de sua vida. Conheceu o Amor (bem) e a Dor (mal) no mesmo dia. As pessoas sabem de coisas que não sabemos. Foi exatamente isso que Ivan pensou do coronel.

“Se eu soubesse o que ele sabe, talvez eu o compreendesse, e aquilo que eu vi, não me atormentaria assim.”

E por causa dessa noite, Ivan nunca mais foi o mesmo; sua vida inteira foi transformada por esse dia. E ele próprio chegou à conclusão que não prestou para nada. É claro e lógico que ele contando isso aos amigos, eles, evidentemente, não concordaram e achavam tudo isso uma grande tolice. Eles ficaram intrigados com a questão sentimental de Ivan, o que aconteceu com todo aquele amor e por que a sua amada se casou com outro? Então perguntaram:

- Bem, e o amor? Em que deu?

- O amor? O amor, daquele dia em diante começou a minguar. ... o amor definhou e acabou.

Não se chega ao fim sem se passar pelo início; não se morre sem se ter nascido. Trocar uma margem pela outra elimina a possibilidade de totalização. Pode-se até escolher entre a noite e o dia. A aurora  é uma nova possibilidade. Bom quando se faz a coisa certa, mas errar faz parte. Os opostos se atraem: amor e ódio, bem e mal, guerra e paz... dois lados de uma mesma moeda. Uma coisa existe em função da outra.

Às vezes é necessário esquecer o que nos ensinaram e tentar aprender sozinho, pois só assim se acerta ou se erra ainda mais. Adquire-se experiência. Certas passagens da vida ficam registradas para sempre. Guarda-se o que se quer. Lembranças que não se escolhe podem vir à tona quando menos se espera. O ser é resultado daquilo que lê, que come, que faz, que vive; são tantas as possibilidades que o permeiam... do nada pode-se viver situações inusitadas....agora, por exemplo você lendo isto, poderia estar fazendo outra coisa....

Decerto, DEPOIS DO BAILE, depois de um filme, depois do almoço, depois de um beijo, depois de uma leitura de um poema ou um conto... não se é mais o mesmo.

As coincidências do mundo ficcional não são obras do acaso. Tudo depende das circunstâncias. Ela imita a arte da vida.

Anos depois, Ivan, ao contar essa história aos amigos o modo de pensar já era outro; o que ele viu e viveu no passado poderia ser uma perversão. Se a história do tártaro aconteceu era porque alguma coisa eles sabiam que Ivan não sabia, e ele nunca descobriu o que era. E ele conclui que é uma das coisas que podem modificar e dirigir a vida de um homem para sempre.

E a questão do 'entender e não compreender' achava terrível e inconcebível que uma obra ficcional não terminasse na forma convencional do 'Foram felizes para sempre' como acontece nos contos de fadas.

Na Arte tudo é possível. Relendo um livro, facilmente se consegue tirar novas conclusões, repensar valores e alterá-los; já na vida, devido a muitas circunstâncias diferentemente da ficção, pode-se também rever conceitos e até modificá-los. É difícil, mas não impossível.
Eunice Bernal

Depois do Baile – Leon Tolstoi - Cotação: *****

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