sábado, 18 de julho de 2009

O VESTIDO – Esse Obscuro Objeto do Desejo

O VESTIDO – Esse Obscuro Objeto do Desejo

Carlos Drummond de Andrade é o meu poeta brasileiro preferido. O Caso do Vestido, é um de seus poemas que considero fascinante e intrigante. Ele é composto de 150 versos distribuídos em 75 estrofes de dois versos cada. É um poema que tem HISTÓRIA, que conta várias histórias tendo como protagonista um objeto que é um VESTIDO.

Eis o poema:

CASO DO VESTIDO
Nossa mãe, o que é aquele
vestido, naquele prego?

Minhas filhas, é o vestido
de uma dona que passou.

Passou quando, nossa mãe?
Era nossa conhecida?

Minhas filhas, boca presa.
Vosso pai evém chegando.

Nossa mãe, dizei depressa
que vestido é esse vestido.

Minhas filhas, mas o corpo
ficou frio e não o veste.

O vestido, nesse prego,
está morto, sossegado.

Nossa mãe, esse vestido
tanta renda, esse segredo!

Minhas filhas, escutai
palavras de minha boca.

Era uma dona de longe,
vosso pai enamorou-se.

E ficou tão transtornado,
se perdeu tanto de nós,

se afastou de toda vida,
se fechou, se devorou,

chorou no prato de carne,
bebeu, brigou, me bateu,

me deixou com vosso berço,
foi para a dona de longe,

mas a dona não ligou.
Em vão o pai implorou.

Dava apólice, fazenda,
dava carro, dava ouro,

beberia seu sobejo,
lamberia seu sapato.

Mas a dona nem ligou.
Então vosso pai, irado,

me pediu que lhe pedisse,
a essa dona tão perversa,

que tivesse paciência
e fosse dormir com ele...

Nossa mãe, por que chorais?
Nosso lenço vos cedemos.

Minhas filhas, vosso pai
chega ao pátio. Disfarcemos.

Nossa mãe, não escutamos
pisar de pé no degrau.

Minhas filhas, procurei
aquela mulher do demo.

E lhe roguei que aplacas
sede meu marido a vontade.

Eu não amo teu marido,
me falou ela se rindo.

Mas posso ficar com ele
se a senhora fizer gosto,

só pra lhe satisfazer,
não por mim, não quero homem.

Olhei para vosso pai,
os olhos dele pediam.

Olhei para a dona ruim,
os olhos dela gozavam.

O seu vestido de renda,
e colo mui devassado,

mais mostrava que escondia
as partes da pecadora.

Eu fiz meu pelo-sinal,
me curvei... disse que sim.

Sai pensando na morte,
mas a morte não chegava.

Andei pelas cinco ruas,
passei ponte, passei rio,

visitei vossos parentes,
não comia, não falava,

tive uma febre terçã,
mas a morte não chegava.

Fiquei fora de perigo,
fiquei de cabeça branca,

perdi meus dentes, meus olhos,
costurei, lavei, fiz doce,

minhas mãos se escalavraram,
meus anéis se dispersaram,

minha corrente de ouro
pagou conta de farmácia.

Vosso pais sumiu no mundo.
O mundo é grande e pequeno.

Um dia a dona soberbam
e aparece já sem nada,

pobre, desfeita, mofina,
com sua trouxa na mão.

Dona, me disse baixinho,
não te dou vosso marido,

que não sei onde ele anda.
Mas te dou este vestido,

última peça de luxo
que guardei como lembrança

daquele dia de cobra,
da maior humilhação.

Eu não tinha amor por ele,
ao depois amor pegou.

Mas então ele enjoado
confessou que só gostava

de mim como eu era dantes.
Me joguei a suas plantas,

fiz toda sorte de dengo,
no chão rocei minha cara,

me puxei pelos cabelos,
me lancei na correnteza,

me cortei de canivete,
me atirei no sumidouro,

bebi fel e gasolina,
rezei duzentas novenas,

dona, de nada valeu:
vosso marido sumiu.

Aqui trago minha roupa
que recorda meu malfeito

de ofender dona casada
pisando no seu orgulho.

Recebei esse vestido
e me dai vosso perdão.

Olhei para a cara dela,
quede os olhos cintilantes?

quede graça de sorriso,
quede colo de camélia?

quede aquela cinturinha
delgada como jeitosa?

quede pezinhos calçados
com sandálias de cetim?

Olhei muito para ela,
boca não disse palavra.

Peguei o vestido, pus
nesse prego da parede.

Ela se foi de mansinho
e já na ponta da estrada

vosso pai aparecia.
Olhou pra mim em silêncio,

mal reparou no vestido
e disse apenas: — Mulher,

põe mais um prato na mesa.
Eu fiz, ele se assentou,

comeu, limpou o suor,
era sempre o mesmo homem,

comia meio de lado
e nem estava mais velho.

O barulho da comida
na boca, me acalentava,

me dava uma grande paz,
um sentimento esquisito

de que tudo foi um sonho,
vestido não há... nem nada.

Minhas filhas, eis que ouço
vosso pai subindo a escada.
Carlos Drummond de Andrade
Uma obra literária EM VERSOS, transformada em um belíssimo filme nacional: O VESTIDO dirigido por Paulo Thiago, roteirizado por ele e por Haroldo Marinho Barbosa.

A literatura é TÃO imprescindível e fundamental quanto a música, o cinema entre outras manifestações artísticas. E falar em literatura vale lembrar que toda poesia nem sempre é de fácil compreensão, interpretação ou tradução. Ser considerada obra aberta, não significa que ela possa ser escancarada.

Em se tratando de cinematografia, tornou-se lugar comum o encontro de duas linguagens (literatura e cinema), os textos literários em prosa transformados em belíssimos filmes. Não querendo entrar no mérito de grau de igualdade, inferioridade ou superioridade, ou melhor, se o filme superou ou não a literatura, e vice-versa, não deixando de ser um assunto relevante, porém para outro momento.

O poema O Caso do Vestido do Drummond, é inédito, que eu saiba, saindo das páginas líricas, e sendo transformado primeiramente num ótimo romance pelas mãos de Carlos Herculano considerado um dos mais talentosos da nova geração, vencedor de vários prêmios literários e posteriormente um argumento para roteiro do filme proposto pelo cineasta Paulo Thiago que, como eu, é também fã do poeta Drummond. É claro que o romancista mineiro Herculano topou, graças a ele, temos somado ao cinema nacional um dos filmes mais brilhantes e formidáveis lançado em 2004 que é esse homônimo - O VESTIDO.

E a storyline ficou ótima: A descoberta de um antigo vestido faz com que duas irmãs decidam investigar o passado de sua família. Sem falar nas ótimas atuações de todo o elenco escolhido a dedo: Gabriela Duarte, Ana Beatriz Nogueira, Leonardo Vieira, Paulo José e Daniel Dantas.

E a sinopse não ficou para trás: Por acaso duas meninas descobrem, no porão de sua casa, um velho e lindo vestido de festa. Curiosas, elas querem saber corno o vestido foi parar ali, principalmente após verem sua mãe chorando com o mesmo entre as mãos. Elas iniciam então uma investigação, que pode responder ainda outra pergunta: por que sempre à mesa, nas refeições, havia um prato reservado ao pai, que as havia abandonado há muitos anos?

Do poema para o romance e do romance para o cinema, Carlos Herculano Lopes cumpre a proposta e escreve um romance épico de amor e paixão na Minas Gerais dos anos 40, recheando-o com outros personagens e um enredo tão envolvente quanto o do poema. Foi, segundo ele, um desafio interessante escrever este romance.(“O Vestido”, BRA, 2004, 121 min)

O cinema brasileiro nunca esteve tão bom quanto agora; impecável, e o Vestido é intenso e envolvente. O filme é tão sublime quanto o poema. É um leve dois e pague um. Uma obra-prima e mais uma vez Paulo Thiago fez escolha acertada, já que em 2002, ano do centenário do Poeta Carlos Drummond de Andrade, o cineasta lançou o documentário POETA DE SETE FACES.

Lembrando que 2002 foi o ano de centenário do poeta, e até eu me inspirei no poema QUADRILHA para escrevinhar algo do gênero Dramaturgia.
Eunice

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