A metamorfose de Gregor Samsa, Raul Seixas, você, eu, todos nós.
O homem vive em eterna transformação desde o ventre da mãe, passando pela infância, construindo vários tipos de relacionamentos, gostando hoje de alguém e no dia seguinte nem mais se lembrando do nome e da fisionomia da pessoa. Quando se está de bem com a vida, acha-se tudo belo e maravilhoso, e quando se está com cólicas ou dor de cabeça, odeia-se o mundo. Passa-se pela vida adulta, constrói-se família, e um belo dia nota-se o ninho se esvaziando, cada um dos filhos partindo, seguindo seu rumo e fica-se novamente só, exatamente como se veio ao mundo. Único exemplar que pensa o que se pensa e ninguém pensará igual. Nem tudo se pode falar, mas o pensamento é infinito: pode-se imaginar as coisas mais obscuras ou mais amáveis que ninguém nunca ficará sabendo exceto o seu dono. Mesmo que se tente revelá-lo muita coisa jamais se falará, ou pela vergonha ou pela censura. Proibido pelo próprio pensamento e até se abrir a boca coisas se perdem pelo caminho, mente-se, transforma-se, enxuga-se o argumento por ene razões.
Metamorfose... a pele que um dia foi suave e com brilho, macia e delicada, perderá a beleza e a firmeza com o passar do tempo. O rei Salomão um dia disse que viemos do pó e ao pó retornaremos. Abre-se aqui um leque de discussões acerca do assunto metamorfose, de que ela é o livre-arbítrio, por exemplo, a eterna transformação é escolha pessoal; já o pó que volta a ser pó seria o destino, a vida toda já vem definida, nada a acrescentar, um pacote pronto, sem manual; é abrir e usar.
Kafka o profeta da ficção; Gregor Samsa existe em cada um, o homem vive em eterna trasnformação. A poesia de Raul Seixas tem um fundo de verdade... "Eu prefiro ser / Essa metamorfose ambulante". O tempo não torna ninguém mais sábio por causa dos cabelos brancos... a sabedoria pode sofrer metamorfose se não vier acompanhada de inteligência e bom senso, então... perde-se tudo no meio do caminho, dependendo do caso pode emburrecer...
Às vezes não nós reconhecemos mais diante do espelho e da sociedade. Tantas são as transformações que dependendo do caso passamos despercebidos pela vida, ou, a pessoa amada nem nota o novo corte de cabelo, ou percebe as rugas no canto dos olhos; a mãe nota que o cabelo está ficando ralo, a balança diz que se está acima do peso. Os amigos notam que já não se atrai como antes; muda-se o lado de dormir na cama, muda-se hábitos alimentares, muda-se a cor preferida, de time, de casa, os gostos pessoais para filmes, para a música, de praia, de família, de emprego, de opinião... a metamorfose parece estar presente em tudo.
Esse assunto vai longe...
E a metamorfose continua em nossas vidas e mentes... o que eu pensava ontem de você, hoje eu não penso mais... A transformação não é opção, pode ser escolha, por isso deve-se pensar com cuidado para sempre fazer a mais acertada e que nos faça feliz.
Agora, que tal mudar de assunto?
Eunice Bernal
*****
Numa manhã, ao despertar de sonhos inquietantes, Gregório Samsa deu por si na cama transformado num gigantesco inseto. Estava deitado sobre o dorso, tão duro que parecia revestido de metal, e, ao levantar um pouco a cabeça, divisou o arredondado ventre castanho dividido em duros segmentos arqueados, sobre o qual a colcha dificilmente mantinha a posição e estava a ponto de escorregar. Comparadas com o resto do corpo, as inúmeras pernas, que eram miseravelmente finas, agitavam-se desesperadamente diante de seus olhos.
Que me aconteceu? — pensou. Não era nenhum sonho. O quarto, um vulgar quarto humano, apenas bastante acanhado, ali estava, como de costume, entre as quatro paredes que lhe eram familiares. Por cima da mesa, onde estava deitado, desembrulhada e em completa desordem, uma série de amostras de roupas; Samsa era caixeiro-viajante, estava pendurada a fotografia que recentemente recortara de uma revista ilustrada e colocara numa bonita moldura dourada. Mostrava uma senhora, de chapéu e estola de peles, rigidamente sentada, a estender ao espectador um enorme regalo de peles, onde o antebraço sumia!
Gregório desviou então a vista para a janela e deu com o céu nublado — ouviam-se os pingos de chuva a baterem na calha da janela e isso o fez sentir-se bastante melancólico. Não seria melhor dormir um pouco e esquecer todo este delírio? — cogitou. Mas era impossível, estava habituado a dormir para o lado direito e, na presente situação, não podia virar-se. Por mais que se esforçasse por inclinar o corpo para a direita, tornava sempre a rebolar, ficando de costas. Tentou, pelo menos, cem vezes, fechando os olhos, para evitar ver as pernas a debaterem-se, e só desistiu quando começou a sentir no flanco uma ligeira dor entorpecida que nunca antes experimentara.
Oh, meu Deus, pensou, que trabalho tão cansativo escolhi! Viajar, dia sim, dia não. É um trabalho muito mais irritante do que o trabalho do escritório propriamente dito, e ainda por cima há também o desconforto de andar sempre a viajar, preocupado com as ligações dos trens, com a cama e com as refeições irregulares, com conhecimentos casuais, que são sempre novos e nunca se tornam amigos íntimos.
Diabos levem tudo isto! Sentiu uma leve comichão na barriga; arrastou-se lentamente sobre as costas, mais para cima na cama, de modo a conseguir mexer mais facilmente a cabeça, identificou o local da comichão, que estava rodeado de uma série de pequenas manchas brancas cuja natureza não compreendeu no momento, e fez menção de tocar lá com uma perna, mas imediatamente a retirou, pois, ao seu contato, sentiu-se percorrido por um arrepio gelado.
Voltou a deixar-se escorregar para a posição inicial. Isto de levantar cedo, pensou, deixa a pessoa estúpida. Um homem necessita de sono. Há outros comerciantes que vivem como mulheres de harém. Por exemplo, quando volto para o hotel, de manhã, para tomar nota das encomendas que tenho, esses se limitam a sentar-se à mesa para o café da manhã. Eu que tentasse sequer fazer isso com o meu patrão: seria logo despedido. De qualquer maneira, era capaz de ser bom para mim — quem sabe? Se não tivesse de me agüentar, por causa dos meus pais, há muito tempo que me teria despedido; iria ter com o patrão e lhe falar exatamente o que penso dele. Havia de deitar-me em cima da mesa do escritório! Também é um hábito esquisito, esse de se sentar à mesa em plano elevado e falar para baixo para os empregados, tanto mais que eles têm de aproximar-se bastante, porque o patrão é ruim de ouvido. Bem, ainda há uma esperança; depois de ter economizado o suficiente para pagar o que os meus pais lhe devem — o que deve levar outros cinco ou seis anos —, faço-o, com certeza. Nessa altura, vou me libertar completamente. Mas, para agora, o melhor é me levantar, porque o meu trem parte às 5.
Olhou para o despertador, que fazia tique-taque na cômoda. Pai do Céu! – pensou. Eram 6 e meia e os ponteiros moviam- se em silêncio, até passava da meia hora, era quase um quarto para as 7. O despertador não teria tocado? Da cama, via-se que estava corretamente regulado para as 4; claro que devia ter tocado. Sim, mas seria possível dormir sossegadamente no meio daquele barulho que trespassava os ouvidos? Bem, ele não tinha dormido sossegadamente; no entanto, aparentemente, se assim era, ainda devia ter sentido mais o barulho. Mas que faria agora? O próximo trem saía às 7; para o apanhar tinha de correr como um doido, as amostras ainda não estavam embrulhadas e ele próprio não se sentia particularmente fresco e ativo. E, mesmo que apanhasse o trem, não conseguiria evitar uma reprimenda do chefe, visto que o porteiro da firma havia de ter esperado o trem das 5 e há muito teria comunicado a sua ausência. O porteiro era um instrumento do patrão, invertebrado e idiota. Bem, suponhamos que dizia que estava doente? Mas isso seria muito desagradável e pareceria suspeito, porque, durante cinco anos de emprego, nunca tinha estado doente. O próprio patrão certamente iria lá à casa com o médico da Previdência, repreenderia os pais pela preguiça do filho e poria de parte todas as desculpas, recorrendo ao médico da Previdência, que, evidentemente, considerava toda a humanidade um bando de falsos doentes perfeitamente saudáveis. E enganaria assim tanto desta vez? Efetivamente, Gregório sentia-se bastante bem, à parte uma sonolência que era perfeitamente supérflua depois de um tão longo sono, e sentia-se mesmo esfomeado. (...)
O escritor Franz Kafka, de nacionalidade alemã, nasceu na Tcheco-Eslováquia em 1883. A Metamorfose é sua obra mais conhecida, com a ação do personagem desenrolando-se em clima fantástico e angustiante, a ponto de o nome do autor ter sofrido declinações, como a expressão “kafkiano”, para qualificar situações obscuras e de sofrimento monumental. Kafka morreu na Alemanha em 1924.
Trecho de A Metamorfose, de Franz Kafka.
Metamorfose Ambulante
Raul Seixas
Prefiro ser
Essa metamorfose ambulante
Eu prefiro ser
Essa metamorfose ambulante
Do que ter aquela velha opinião
Formada sobre tudo
Do que ter aquela velha opinião
Formada sobre tudo
Eu quero dizer
Agora, o oposto do que eu disse antes
Eu prefiro ser
Essa metamorfose ambulante
Do que ter aquela velha opinião
Formada sobre tudo
Do que ter aquela velha opinião
Formada sobre tudo
Sobre o que é o amor
Sobre o que eu nem sei quem sou
Se hoje eu sou estrela
Amanhã já se apagou
Se hoje eu te odeio
Amanhã lhe tenho amor
Lhe tenho amor
Lhe tenho horror
Lhe faço amor
Eu sou um ator
É chato chegar
A um objetivo num instante
Eu quero viver
Nessa metamorfose ambulante
Do que ter aquela velha opinião
Formada sobre tudo
Do que ter aquela velha opinião
Formada sobre tudo
Sobre o que é o amor
Sobre o que eu nem sei quem sou
Se hoje eu sou estrela
Amanhã já se apagou
Se hoje eu te odeio
Amanhã lhe tenho amor
Lhe tenho amor
Lhe tenho horror
Lhe faço amor
Eu sou um ator
Eu vou lhe desdizer
Aquilo tudo que eu lhe disse antes
Eu prefiro ser
Essa metamorfose ambulante
Do que ter aquela velha opinião
Formada sobre tudo
Do que ter aquela velha opinião
Formada sobre tudo
*
Que me aconteceu? — pensou. Não era nenhum sonho. O quarto, um vulgar quarto humano, apenas bastante acanhado, ali estava, como de costume, entre as quatro paredes que lhe eram familiares. Por cima da mesa, onde estava deitado, desembrulhada e em completa desordem, uma série de amostras de roupas; Samsa era caixeiro-viajante, estava pendurada a fotografia que recentemente recortara de uma revista ilustrada e colocara numa bonita moldura dourada. Mostrava uma senhora, de chapéu e estola de peles, rigidamente sentada, a estender ao espectador um enorme regalo de peles, onde o antebraço sumia!
Gregório desviou então a vista para a janela e deu com o céu nublado — ouviam-se os pingos de chuva a baterem na calha da janela e isso o fez sentir-se bastante melancólico. Não seria melhor dormir um pouco e esquecer todo este delírio? — cogitou. Mas era impossível, estava habituado a dormir para o lado direito e, na presente situação, não podia virar-se. Por mais que se esforçasse por inclinar o corpo para a direita, tornava sempre a rebolar, ficando de costas. Tentou, pelo menos, cem vezes, fechando os olhos, para evitar ver as pernas a debaterem-se, e só desistiu quando começou a sentir no flanco uma ligeira dor entorpecida que nunca antes experimentara.
Oh, meu Deus, pensou, que trabalho tão cansativo escolhi! Viajar, dia sim, dia não. É um trabalho muito mais irritante do que o trabalho do escritório propriamente dito, e ainda por cima há também o desconforto de andar sempre a viajar, preocupado com as ligações dos trens, com a cama e com as refeições irregulares, com conhecimentos casuais, que são sempre novos e nunca se tornam amigos íntimos.
Diabos levem tudo isto! Sentiu uma leve comichão na barriga; arrastou-se lentamente sobre as costas, mais para cima na cama, de modo a conseguir mexer mais facilmente a cabeça, identificou o local da comichão, que estava rodeado de uma série de pequenas manchas brancas cuja natureza não compreendeu no momento, e fez menção de tocar lá com uma perna, mas imediatamente a retirou, pois, ao seu contato, sentiu-se percorrido por um arrepio gelado.
Voltou a deixar-se escorregar para a posição inicial. Isto de levantar cedo, pensou, deixa a pessoa estúpida. Um homem necessita de sono. Há outros comerciantes que vivem como mulheres de harém. Por exemplo, quando volto para o hotel, de manhã, para tomar nota das encomendas que tenho, esses se limitam a sentar-se à mesa para o café da manhã. Eu que tentasse sequer fazer isso com o meu patrão: seria logo despedido. De qualquer maneira, era capaz de ser bom para mim — quem sabe? Se não tivesse de me agüentar, por causa dos meus pais, há muito tempo que me teria despedido; iria ter com o patrão e lhe falar exatamente o que penso dele. Havia de deitar-me em cima da mesa do escritório! Também é um hábito esquisito, esse de se sentar à mesa em plano elevado e falar para baixo para os empregados, tanto mais que eles têm de aproximar-se bastante, porque o patrão é ruim de ouvido. Bem, ainda há uma esperança; depois de ter economizado o suficiente para pagar o que os meus pais lhe devem — o que deve levar outros cinco ou seis anos —, faço-o, com certeza. Nessa altura, vou me libertar completamente. Mas, para agora, o melhor é me levantar, porque o meu trem parte às 5.
Olhou para o despertador, que fazia tique-taque na cômoda. Pai do Céu! – pensou. Eram 6 e meia e os ponteiros moviam- se em silêncio, até passava da meia hora, era quase um quarto para as 7. O despertador não teria tocado? Da cama, via-se que estava corretamente regulado para as 4; claro que devia ter tocado. Sim, mas seria possível dormir sossegadamente no meio daquele barulho que trespassava os ouvidos? Bem, ele não tinha dormido sossegadamente; no entanto, aparentemente, se assim era, ainda devia ter sentido mais o barulho. Mas que faria agora? O próximo trem saía às 7; para o apanhar tinha de correr como um doido, as amostras ainda não estavam embrulhadas e ele próprio não se sentia particularmente fresco e ativo. E, mesmo que apanhasse o trem, não conseguiria evitar uma reprimenda do chefe, visto que o porteiro da firma havia de ter esperado o trem das 5 e há muito teria comunicado a sua ausência. O porteiro era um instrumento do patrão, invertebrado e idiota. Bem, suponhamos que dizia que estava doente? Mas isso seria muito desagradável e pareceria suspeito, porque, durante cinco anos de emprego, nunca tinha estado doente. O próprio patrão certamente iria lá à casa com o médico da Previdência, repreenderia os pais pela preguiça do filho e poria de parte todas as desculpas, recorrendo ao médico da Previdência, que, evidentemente, considerava toda a humanidade um bando de falsos doentes perfeitamente saudáveis. E enganaria assim tanto desta vez? Efetivamente, Gregório sentia-se bastante bem, à parte uma sonolência que era perfeitamente supérflua depois de um tão longo sono, e sentia-se mesmo esfomeado. (...)
O escritor Franz Kafka, de nacionalidade alemã, nasceu na Tcheco-Eslováquia em 1883. A Metamorfose é sua obra mais conhecida, com a ação do personagem desenrolando-se em clima fantástico e angustiante, a ponto de o nome do autor ter sofrido declinações, como a expressão “kafkiano”, para qualificar situações obscuras e de sofrimento monumental. Kafka morreu na Alemanha em 1924.
Trecho de A Metamorfose, de Franz Kafka.
Metamorfose Ambulante
Raul Seixas
Prefiro ser
Essa metamorfose ambulante
Eu prefiro ser
Essa metamorfose ambulante
Do que ter aquela velha opinião
Formada sobre tudo
Do que ter aquela velha opinião
Formada sobre tudo
Eu quero dizer
Agora, o oposto do que eu disse antes
Eu prefiro ser
Essa metamorfose ambulante
Do que ter aquela velha opinião
Formada sobre tudo
Do que ter aquela velha opinião
Formada sobre tudo
Sobre o que é o amor
Sobre o que eu nem sei quem sou
Se hoje eu sou estrela
Amanhã já se apagou
Se hoje eu te odeio
Amanhã lhe tenho amor
Lhe tenho amor
Lhe tenho horror
Lhe faço amor
Eu sou um ator
É chato chegar
A um objetivo num instante
Eu quero viver
Nessa metamorfose ambulante
Do que ter aquela velha opinião
Formada sobre tudo
Do que ter aquela velha opinião
Formada sobre tudo
Sobre o que é o amor
Sobre o que eu nem sei quem sou
Se hoje eu sou estrela
Amanhã já se apagou
Se hoje eu te odeio
Amanhã lhe tenho amor
Lhe tenho amor
Lhe tenho horror
Lhe faço amor
Eu sou um ator
Eu vou lhe desdizer
Aquilo tudo que eu lhe disse antes
Eu prefiro ser
Essa metamorfose ambulante
Do que ter aquela velha opinião
Formada sobre tudo
Do que ter aquela velha opinião
Formada sobre tudo
*
Nenhum comentário:
Postar um comentário