A Mulher sem Piano – La Mujer sin Piano
Assisti ao filme A Mulher sem Piano no Festival do Rio deste ano do diretor espanhol Javier Rebollo produzido em 2009 e achei algumas passagens bem interessantes e instigantes, recheado de citações e originalidade que, para não passar em branco ou cair no esquecimento, resolvi registrar aqui.
A estranheza começa pelo título A Mulher sem Piano (?), penso que há duas possibilidades de entendimento:
1º - Pode ser uma expressão idiomática, daí somente o nativo dessa nação para explicar o seu significado; 2º - A outra possibilidade seria interpretando a história da própria protagonista A MULHER do título e a razão dela não possuir um instrumento musical desse porte: imenso e pesado, sendo necessário mais de uma pessoa para transportá-lo. O que pode representar essa figura de linguagem? O árduo trabalho de se Carregar um piano nas costas ou a outra expressão Matar um leão por dia, seria a luta pela sobrevivência nessa selva, refere-se a todo e qualquer sacrifício diário de todo mortal, a luta constante para resolver os problemas, a cruz de cada um, o fardo, incessante da labuta e dos afazeres por mais simples que seja.
Conta a história de Rosa (Carmen Machi), casada, independente, dona de seu próprio negócio, um filho casado de uns trinta anos. A vida de Rosa digamos, é um mar de rosas pelo fato de ser uma eterna rotina: vive para a casa, o trabalho e para o marido. Só que a sua vida tornou-se reprise do filme de sua própria história enfadonho, roteiro enjoado que perdura por trinta anos. Pela sinopse, não chamaria a atenção nem do cinéfilo eclético, pois a princípio parece idiota. A rotina de uma dona-de-casa, a quem interessaria? Só que a sinopse às vezes engana. Este filme, garanto, tem altas doses de originalidade.
A primeira cena, apresentação das personagens, acontece dentro do carro de seu marido e quase não há diálogo, ou melhor, depois de trinta anos de casamento, já não existe comunicação verbal muito menos contato físico. Eles despedem-se friamente e cada um segue o seu rumo.
A outra locação é a residência do casal, onde Rosa, mulher de meia idade, comum, realiza sua dupla jornada, seus afazeres domésticos, cuidar do marido, da casa, lavar, passar cozinhar, preparar o café, fazer faxina, atender às suas clientes que funciona em um recinto da sua própria residência, uma clínica de tratamento de beleza, jantar, assistir a um pouco de televisão e por fim dormir. A sua vida é uma eterna rotina. Com o marido não há mais diálogo. Às vezes, ela em sua intimidade pratica o tal ‘amor solitário’. Falam somente o básico. Agem como se fossem dois estranhos vivendo sob o mesmo teto. A história tem duração não mais que um dia. Nada de novo acontece na vida dessa mulher sem piano que já não sorri para a vida, e nem se acha uma pessoa interessante. A mesmice é sua companheira inseparável.
Após se despedir do marido, Rosa vai aos correios para retirar uma encomenda. Entrega à funcionária o aviso de retirada juntamente com seu documento de identidade, e a funcionária dos correios a faz assinar o papel de recebimento da mesma, e volta com um pacote prontamente para lhe entregar. Confere a assinatura com a da identidade e, depois de examiná-lo cuidadosamente, diz que é impossível lhe entregar o pacote porque o seu RG está já há três anos vencido. Rosa fica incrédula pelo que acaba de ouvir e retruca dizendo tratar-se da própria, para que conferisse novamente a foto com ela e de que já havia assinado a guia de recebimento. A funcionária séria e secamente lhe responde que não poderá lhe entregar e pega o pacote e leva-o de volta para guardar. Rosa fica pensativa e sem entender. Nada mais a fazer volta para casa desanimada sem a sua encomenda.
E aí, querido expectador? Você não gostaria de saber o conteúdo desse pacote, assim como eu? Fiquei curiosa, já que o mesmo não nos foi revelado. O que será que Rosa queria a todo custo retirar nesse dia? O que ela comprou? Chegou a perguntar até que horas era o atendimento nesse estabelecimento. Mas quem tem a imaginação fértil... Rosa volta para casa arrasada... cuida do almoço da faxina, vai ao seu consultório anexo ao lar, o telefone toca, vai atender, o interlocutor é um velho conhecido nosso, o vendedor telemarketing, a chatice rotineira descartável. Rosa, sem piano, sem pena, sem plano sem pestanejar, desligou. A Rosa definhava, morria a cada dia, cansada, apática, da eterna repetição, da rotina, nem as ligações ao marido era novidade. Resolve ligar infinitamente nesse dia, também ao filho.
Outra coisa instigante que acontece na locação é um quadro na parede, uma pintura pendurada sobre a cabeceira de seu aposento, que chama muito a atenção e instiga nossa imaginação por ser uma pintura incomum, sombria, escura, e principalmente para um quarto do casal, representando um caçador a cavalo, um lobo morto por ele e ainda há três vivos, os rodeando, mas tem apenas duas flechas e mais alguns cães. O marido ao se levantar sempre olhava o quadro; já Rosa, como parecia não gostar, resolveu retirá-lo de cena, e o guardou em algum canto da casa.
A noite cai. O marido não janta. A mulher olha a comida que preparou com carinho e ninguém a tocou, indo tudo para o lixo. Antes de irem dormir assistem juntos a um pouco de televisão que nada tem de interessante; ela faz um passeio pelos canais procurando algo, eles agem como dois estranhos, um mantendo a distância física e emocional do outro, o único som que se ouve é o que vem do aparelho. Até que ele resolve ir para a cama e ela fica um pouco mais. Rosa desliga a tevê, vai ao banheiro, se arruma coloca uma peruca talvez na tentativa de se tornar naquele momento uma outra pessoa, pega uma mala e sem avisar o companheiro, parte. Qual seria o objetivo? Fugir daquela situação? Começar de novo? Durante bastante tempo ela vaga pelas ruas de Madrid. Vai para a rodoviária, dirige-se a um guichê a fim de comprar uma passagem, sem destino. Em vão. É informada pelo funcionário que acabou de fechar e que só reabrirá no dia seguinte às sete da matina. Desanimada, ela vai procurar um canto para descansar. Observa as pessoas ao redor. Faz algumas ligações, mas do outro lado da linha ninguém atende. Observa atentamente um rapaz que está sentado a sua frente e é também observada por ele. Um celular toca. É do rapaz, mas ela pensa que é seu porque tem o mesmo toque. Eles começam a conversar a partir daí, falando da mesma música dos seus respectivos aparelhos. Surge um affair ali. O rapaz, Rdek conta que é polonês fugitivo e que deseja retornar para a sua terra natal para pagar uma dívida e que está na Espanha a trabalho, e que já juntou dinheiro suficiente para isso; somente depois ela descobre que ele é procurado pela polícia polonesa, enfim, uma situação insólita vivida por ela e pelo da poltrona testemunhando essa condição inesperada vivida por ela. Ela mesma não sabia direito o que estava acontecendo. Sabia que deveria sair dali, tentar fazer alguma coisa, ir em busca de felicidade.
Ela dá uma saída para fumar porque dentro do saguão é proibido. Lá fora é confundida com prostituta, acaba fazendo amizade com uma e com outras pessoas. Volta ao saguão o ambiente bem movimentado, gente dormindo pelos cantos, e o guarda local despejando-os de lá. A mulher sem piano percorre por diversos cantos de Madrid pela madrugada afora, vive diversas situações insólitas. Até que encontra o seu conhecido polonês Rdek, caído no meio da rua, ela o acode, e ambos saem para um restaurante e entram para comer. O novo casal vive um dia incrível de descobertas devido a momentos difíceis que ambos atravessam. Eles seguem a madrugada toda em fuga. Até que resolvem pernoitar num hotel.
No salão do hotel tem um piano e Rosa ao passar por ele, dedilha alguma coisa. Aleluia! Por um instante daquele dia peculiar Rosa é A MULHER COM PIANO!
Lá na intimidade desse quarto de hotel, Rosa deita-se no divã e conta toda a sua vida para seu novo amigo polonês que ouve atentamente. Nesse instante ele ouve com dupla atenção a história do quadro que ela lhe conta, que o retirou de seu quarto e encostou no porão por não entender e não gostar dele.
Rdek fica alguns minutos pensativo, e depois dá maravilhosamente a sua interpretação sobra a obra de arte, qual a sua mensagem e o que essa pintura representa. Para mim foi o ponto culminante do filme. A explicação fantástica! A mulher sem piano e o forasteiro retornam à rodoviária com a intenção de partirem para à Polônia. Ela se dirige a um guichê e compra duas passagens. Ao retornar ao encontro de Rdek, Rosa nota que dois policiais o abordam e o levam dali.
Desanimada, a mulher, não tem outra opção, senão voltar para o seu lar.
Ao chegar a casa já pela manhã, chega a ser cômico, o marido se levantando e ela indo para a cama. A rotina novamente impera: mesa posta, marido saindo para trabalhar, casal sem diálogo, ela a volta com seus afazeres domésticos, até que olha para a parede vazia, sem o quadro, sai e volta com ele e o repõe no seu devido lugar de origem de onde nunca deveria ter saído.
Agora, com ou sem piano, Rosa sabe que pode dar um novo rumo à sua vida. O telefone toca, é o seu filho no outro lado da linha. E a vida segue... todos os dias como uma folha em branco que deve ser preenchida. Cada um é ator ou protagonista de sua própria história... com ou sem piano.
Parabéns aos roteiristas!
Karenina Rostov
*
Sinopse
Rosa é dona de casa e vive com o marido em Madrid. Prestes a entrar na menopausa, ela não tem amigos nem vida social, e seu maior prazer é ver um prato fumegante de comida ser servido com admirável pontualidade na hora das refeições. Tendo vivido toda sua vida em função da família, não está nada satisfeita consigo: não se acha bonita nem gosta de seu cabelo. Mas, num dia desses, decide escapar de sue mundo e viver apenas uma noite diferente. Concha de Prata de Melhor Diretor no Festival de San Sebastián 2009.
Ficha Técnica
Título: La Mujer sin Piano
Diretor: Javier Rebollo
Roteiristas: Lola Mayo, Javier Rebollo
Elenco: Carmen Machi, Jan Budar, Pep Ricart, Nadia Santiago
Ano de Produção: 2009
País: Espanha / França
Duração: 95
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